Gosto muito de caderno novo, de uma agenda que oferece suas páginas em
branco para que um novo ano se inicie. Sabe-se que o tempo é um dom da
eternidade, mas para nós humanos o tempo fatiado em minutos, horas, dias,
meses, anos, representa a chance preciosa de recomeçar, reaprender, renovar-se.
Gosto igualmente de ver essas novas páginas irem sendo preenchidas
com pensamentos, experiências, sonhos, desejos, desafios, realizações, dúvidas
e, até mesmo tristezas e decepções. Isso também faz parte do viver. E, uma das
mais significativas aprendizagens de minha vida foi justamente a pergunta: o
que posso aprender com isso? Essa indagação feita a mim mesma frente aos mais
diversos acontecimentos do cotidiano tem sempre possibilitado vislumbrar coisas
boas mesmo nos momentos ruins.
A educação emocional nos ensina que o que importa não é o que nos
acontece e sim o fazemos com o que nos acontece. Diante de uma dificuldade há
os que recuam, os que ficam imobilizados, mas temos também os que perseveram.
Dom Helder Câmara dizia que “É graça divina começar bem. Graça maior persistir
na caminhada certa. Mas a graça das graças é não desistir nunca”.
Creio que os professores são desses que não desistem nunca, embora
lidando, na maioria das vezes, com uma problemática social e humana que se
apresenta a cada dia mais complexa, confusa, contraditória. Lembro
especialmente de uma professora, mulher obstinada e idealista, que me disse
certa vez com os olhos brilhantes: nenhum aluno haverá de passar por mim em
vão. Haverei de depositar em cada um, sementes de reflexão e de
autoconhecimento. Afinal, o autoconhecimento, como bem dizia Sócrates, é a base
de todo verdadeiro conhecimento.
Outra professora, da qual sempre lembro, foi a que me narrou a
seguinte história: recém formada, foi lotada em uma escola pública, no turno da
noite, em um bairro distante do centro. No primeiro dia de aula quis fazer algo
diferente. Defendia com insistência que problemas antigos precisam de soluções
novas. Levou para a sala uma toalha branca, um pequeno aquário redondo que
tomou como se fosse uma bola de cristal e propôs a turma uma questão: o destino
existe?
Somos senhores da nossa vida ou tudo já está determinado? Sugeriu
antes da roda de conversa para discutir o tema que fizessem uma pequena
dramatização com alguém vivendo o papel de cartomante. Um aluno sentado no
final da sala reclamou de imediato: que é isso professora! Que aula é essa?! Eu
é que não vou participar dessa palhaçada!
Porém, para sua felicidade outra aluna acolheu a ideia dizendo que
era formidável e ela faria o papel de cartomante. A jovem era brilhante e
desempenhou tão bem o seu improvisado papel que a turma se envolveu
completamente na aula e na discussão que se seguiu foi muito participativa e
enriquecedora. Lá atrás, porém, o jovem permanecia em silêncio com uma expressão
de desagradado.
Os dias foram seguindo com novas aulas e novas situações-problemas
sendo apresentadas ao grupo. O rapaz pouco falava limitando-se a entregar algum
trabalho escrito quando era solicitado. Numa noite, em outra turma, numa última
aula, a professora deparou-se com uma situação extremamente tensa: um aluno,
visivelmente alterado, a enfrentou dizendo: veja o que eu faço com o
conhecimento que você preza tanto! E tocou fogo no livro didático.
Os colegas assustados trataram de apagar a labareda que crescia e
quando ela indicou que ele se retirasse e fosse conversar com a coordenação,
ele passou por ela e disse baixinho: sei onde você pega o ônibus. E sei que
você fica lá sozinha. Frente à clara ameaça ela respirou fundo buscando
reorganizar suas emoções e continuou a aula.
Quando a sineta tocou e ela desceu a escola estava praticamente
deserta e a coordenação já havia saído. Parou então, fitando a rua envolta na
noite e pensando o que devia fazer. Foi quando percebeu a presença daquele
aluno da aula da cartomante. Era um rapaz alto e bastante forte e segundo
soubera muito bem relacionado na comunidade. Professora, eu estava esperando
pela senhora. Gostaria que me permitisse acompanhá-la até o ponto de ônibus.
Enquanto caminhamos vou falando algumas coisas que preciso
partilhar com a senhora. Sei que naquele primeiro dia de aula fui bastante
grosseiro. Naquele dia eu estava muito infeliz. Estava bebendo muito, faltando
ao trabalho, e minha noiva por quem sou apaixonado tinha ameaçado romper o
noivado se eu não parasse de beber.
Aquela sua aula da qual aparentemente não participei me fez pensar
muito sobre minha vida e sobre o que eu desejo construir e conquistar. Decidi
que não vou mais beber, busquei ajuda nos Alcoólatras Anônimos, retomei meu
trabalho e estou de casamento marcado. Quero que a senhora compareça e seja
nossa madrinha. Comovida, a professora disse que sim e quando diante do ônibus
que chegara ele lhe disse: sabe professora, a senhora salvou a minha vida, ela
retrucou já dentro do ônibus: pois estamos quites, porque hoje você também
salvou a minha!
A professora que me contou essa história permanece até hoje apaixonada
pelo que faz e envolvida no seu fazer pedagógico como um ato amoroso, que lhe
solicita paciência e sabedoria. Ela sempre se indaga sobre qual entre tantas palavras
é aquela que irá tocar o coração daqueles que lhe escutam e até mesmo qual é a
palavra que eles irão escutar. A cada aula, ela se reinventa, na compreensão
que aquele momento é absolutamente único como possibilidade de troca de
saberes.
Certamente que, para manter esse sentimento de automotivação, é
preciso vivenciar práticas mentais emocionalmente inteligentes que permitam
transformar emoções densas, como a raiva, o medo e a tristeza, em emoções
sutis, como o amor e a alegria. É preciso também ter clareza da própria missão
e daquilo que dá sentido a existência; nossa razão maior para estarmos vivos é
fazermos a diferença no planeta que habitamos.
Apesar de desafiante, o ofício do professor permite como poucos a
grandeza de tocar a alma humana e transformar vidas. Ensinar a pensar, despertar
para a aprendizagem como prática constante de quem não apenas memoriza fórmulas
e dados se torna capaz de enxergar a luz na escuridão; carrega a grandeza e a beleza
daquilo que nos torna verdadeiramente humanos.
Amelia
Albuquerque
Pedagoga
e especialista em Desenvolvimento de Recursos Humanos e psicopedagogia.